Em 18 de março de 2010, foi promulgado nos Estados Unidos o "Foreign Account Tax Compliance Act" (Fatca), que, embora vigente a partir de janeiro de 2013, já causa grande repercussão na comunidade financeira mundial, por suas graves implicações.
Basicamente, essa lei "convida" instituições estrangeiras financeiras e não financeiras a formalizar um acordo com o Internal Revenue Service (IRS) americano - correspondente à Receita Federal - pelo qual serão repassadas informações detalhadas de seus integrantes e clientes, sob pena de haver retenção tributária de 30% sobre todos os pagamentos efetuados, por qualquer fonte de renda americana, por intermédio de tais entidades.
Caso a entidade não tenha realizado o acordo ou seu cliente não permita o repasse das informações - o que também deve ser informado -, será feita a retenção.
A lei se aplica a todas as pessoas físicas e jurídicas americanas que sejam clientes de instituições estrangeiras financeiras ou não financeiras, ainda que não tenham presença física no país.
Ao tomar conhecimento do quanto, para quem e por que os ativos estão sendo pagos, a lei objetiva (i) combater a omissão de receitas alocadas em contas bancárias estrangeiras, obrigando seus titulares a pagar impostos; (ii) combater a evasão fiscal, mediante informações do fluxo de capital e ingressos recebidos por meio daquelas entidades; (ii) inserir nesses esforços os bancos e consultores estrangeiros que viabilizam tais operações; e (iv) minimizar os custos fiscais da lei "Hiring Incentives to Restore Employment" (Hire), cujo propósito, por sua vez, é fomentar empregos naquele país.
Para o governo americano, todos são potenciais sonegadores fiscais
Tal panorama faz surgir inúmeras dúvidas: (i) quem suportará os custos decorrentes de tais exigências (os clientes ou as entidades atingidas)? (ii) e qual a autoridade do governo americano para impor este "preço" àquelas entidades estrangeiras, apenas por viabilizarem o fluxo de capital nos EUA?
Tal panorama faz surgir inúmeras dúvidas: (i) quem suportará os custos decorrentes de tais exigências (os clientes ou as entidades atingidas)? (ii) e qual a autoridade do governo americano para impor este "preço" àquelas entidades estrangeiras, apenas por viabilizarem o fluxo de capital nos EUA?
A essa última indagação, o IRS entende não haver efeitos extraterritoriais, em face da voluntariedade de adesão ao Fatca, ao que ora se rebate com outra indagação: a retenção também é facultativa, independentemente da postura da entidade?
O Fatca insere-se em um contexto de tributação e fiscalização globalizadas. Com efeito, a crescente globalização das economias nacionais faz surgir, cada vez com maior frequência, problemas de dupla tributação e de evasão fiscal. A circulação de gigantesca massa de capitais internacionais e o crescente número de contribuintes com rendas no exterior conferem grande impulso à evasão tributária, suscitando sérias apreensões por parte dos Estados que dela são vítimas.
O direito interno de cada Estado nem sempre atende à complexidade dos problemas decorrentes da evasão fiscal, cuja solução exige estreita colaboração entre as administrações tributárias interessadas, por meio de medidas multilaterais ou bilaterais, entre as quais se insere a cláusula de troca de informações prevista na maioria das convenções.
O Brasil é signatário de significativa quantidade de tratados internacionais e acordos bilaterais de assistência direta ou cooperação legal, pelos quais se obriga, entre outras coisas, a fornecer dados bancários de pessoas investigadas, mediante o cumprimento de certas condições.
A primeira e mais básica das premissas é que o pedido de informações bancárias seja oriundo de uma autoridade competente no país de origem e justificável em face de investigação civil ou criminal. Além disso, o pedido passa pelo crivo das autoridades do país destinatário, que goza de plena liberdade para atendê-lo ou não, sem qualquer consequência de ordem econômica, política ou diplomática.
O Fatca ignora isso. Em primeiro lugar, porque impõe penalidade ao não atendimento de suas determinações, tornando-as, por isso, impositivas. Em segundo lugar, porque os dados bancários devem ser fornecidos indiscriminadamente, sem prévia investigação de qualquer natureza sobre as pessoas atingidas, ou seja, sem nenhuma justificativa individualizada, a não ser a política geral de combate à evasão fiscal.
Desta forma, além de violar o sigilo bancário, o Fatca inverte o princípio de presunção de inocência, pelo qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Para o governo americano, todos são potenciais sonegadores fiscais e, nessa condição, devem provar o contrário, sob pena de pesadíssima multa.
Na ordem constitucional brasileira, o sigilo bancário é expressão do princípio da proteção à intimidade, à vida privada e aos dados, previsto no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal, constituindo, inclusive, cláusula inalterável.
Verifica-se que a troca de informações de natureza tributária entre os países constitui modalidade de cooperação de grande valia para combater a evasão fiscal, principalmente pelos Estados vítimas de tal fenômeno. Trata-se, contudo, de cooperação, e não de imposição sujeita a penalidade, como prevê o Fatca.
A par de tamanhos absurdos, é de se reconhecer que o Fatca vai exigir do Estado brasileiro uma postura firme na defesa da soberania nacional, principalmente no que concerne ao sigilo bancário.
* por Maristela Ferreira de Souza Miglioli e Ana Paula Caldin da Silva são advogadas do escritório Lautenschleger, Romeiro e Iwamizu Advogados / artigos publicados no jornal Valor Econômico
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